28 de mar. de 2014

“Com licença, senhor, permita-me discordar mas...”

(por Victor Neves)

“Veja que beleza
Em diversas cores
Veja que beleza
Em vários sabores
A burrice está na mesa
Tom Zé – Sabor de Burrice, 1967.

Há algum tempo, em português, se usava a palavra golpe pra falar de um sucesso: “deu o golpe” era sinônimo, entre outras possibilidades, de “se deu bem”, “conseguiu o que queria”. Nesta semana marcada pela triste celebração do Golpe de 64 no Brasil, pode-se dizer sem hesitar: a burguesia brasileira, em 64, realmente “deu o golpe”.

Há os evidentíssimos campos onde só não vê quem não quer. O material historiográfico e os estudos de que já dispomos apontam claramente qual foi o setor social que lucrou economicamente com o golpe; em nome de quem ele foi dado; quem o planejou e trabalhou para que a “opinião pública” o aceitasse sem maiores sobressaltos. Aprofundam-se hoje as investigações mais precisas sobre os detalhes do processo – por exemplo, quem COMPROU os oficiais, entre outros mistérios encerrados nesta gaveta farta (que o governo Dilma insiste em querer manter fechada) de conexões entre os milicos e a nossa amiga que, ao contrário da outra, não faltou ao encontro: a cantada e decantada burguesia nacional, sucursal brasileira de uma velha conhecida – a burguesia tout court.

Por outro lado, a ditadura “deu o golpe”, também, num terreno talvez menos “quantificável”: falo, claro, do terreno cultural.

O “golpe”, no campo da cultura, foi a criação daquele “ambiente cultural” no qual milhões de pessoas com menos de 50 anos de idade se tornaram gente. A criação daquele meio no qual nossas sensibilidades, nossas visões de mundo, nossos anseios mais vivos, nossos impulsos profundos, foram formados.

“Conhece-te a ti mesmo”, já ensinava um antepassado do dr. Sócrates. Examinemos então, por alto, alguns aspectos do grande sucesso da ditadura empresarial-militar brasileira no campo cultural.

1. A ditadura e a criação de um mercado nacional de bens culturais no Brasil.

Sob a ditadura houve a expansão sem precedentes da capacidade de produção e difusão de bens culturais no Brasil. Ela se combinou, ainda, ao alargamento do acesso a estes mesmos bens, resultando na consolidação de uma moderna cultura de massas no país. Isto se materializou na expansão de cada vez mais pujantes – e monopolizados – mercados editorial, fonográfico, televisivo etc., em nível nacional. Em síntese, na existência de verdadeiro mercado nacional de bens simbólicos. Grife-se, por favor, a palavra MERCADO.

De outro lado, esta enorme expansão do acesso à cultura se desenvolveu justamente com a expansão do MERCADO a mais uma esfera da vida nacional – a esfera cultural. E, portanto, coincidiu com a colonização de mais alguns campos da existência humana por esta entidade que, apesar da onipresença, de sobrenatural não tem nada. E que tem uma característica, toda sua, que se expande também ao campo da cultura: no mercado não existe “fazer desinteressado”. Tudo o que se produz em seu âmbito pode até satisfazer necessidades humanas desde que, ANTES e como CONDIÇÃO, seja rentável a alguém – na utopia dos liberais, a quem produz, mas na prática a quem detém os meios para que se produza.

Assim, um resultado da modernização brasileira promovida pela ditadura foi uma ampliação do mercado cultural combinada a um empobrecimento da atividade cultural propriamente dita. Esta se voltou, cada vez mais, para a mera manipulação (aqui entendida como satisfação de impulsos imediatos e superficiais, tendentes à reprodução e ao não-questionamento do existente) do “consumidor” combinada ao atendimento dos interesses de grupos monopolistas “produtores” e vendedores de “bens culturais”.

2. A política cultural da ditadura: em busca do emburrecimento perdido.

Hoje se critica muito, nos suplementos culturais dos jornalões brasileiros, a ditadura “por seus excessos desnecessários no campo da cultura”, caracterizando-se sua política cultural, irresponsavelmente, como uma “não-política” baseada na “repressão à livre criatividade” materializada na censura prévia. Naturaliza-se ao mesmo tempo, numa boa, o processo de modernização conservadora que ela concluiu – assim como a repressão brutal às organizações da classe trabalhadora brasileira que este processo exigiu. Vale lembrar: a repressão política teve uma dimensão eminentemente cultural, tendo servido para cortar os laços dos “produtores de cultura” e intelectuais de diversos estratos sociais com a classe trabalhadora então em processo de organização e radicalização. Estes aspectos não são senão a contraface um do outro.

Restringindo-se a ação, no campo da política cultural da ditadura, à “condenável censura” (que, aliás, é caricaturada em tom jocoso como se fosse exercida sem objetivo claro por gente ignorante, o que está longe da verdade), perde-se de vista o que o regime realmente conseguiu nesta esfera e que vai muito além do “pitoresco” expediente de cortar palavrões de músicas ou exigir correção gramatical do compositor.

Com a muito bem dosada combinação entre: censura prévia; brutal repressão política; expansão em escala inédita e “racionalizada” do ensino universitário; consolidação de um mercado nacional de bens simbólicos no Brasil, a política cultural da ditadura empresarial-militar inaugurada em 1964 sabia a que vinha.

Sabia a que vinha, e conseguiu dar o “grande golpe” que almejava: desarmou aquilo que Roberto Schwarz chamou de “hegemonia cultural da esquerda” no país, que teria existido, segundo o professor, até pelo menos 1969. E que teria deixado o país, nos anos que precederam o golpe, “irreconhecivelmente inteligente” – que se recordem, como meros exemplos escolhidos ao acaso, o florescimento cultural baiano que desaguou no Tropicalismo e no Cinema Novo, o nível em que se desenvolvia o debate político no plano nacional, a intervenção cultural aglutinada em torno dos CPCs da UNE.

3. O “desesquecimento” necessário.

Hoje, quando lemos certos colunistas da revista Veja autorizados a falar em público como intelectuais; quando vemos “reality shows” sendo acompanhados como partidas de futebol; quando lemos as colunas assépticas do jornalismo contemporâneo, que reivindica a “objetividade” contra qualquer possibilidade de debate político público; quando ouvimos “historiadores” afirmando que a ditadura, afinal, não foi bem isso que se diz; ou mesmo quando vemos Caetano Veloso e, por que não, Tom Zé, sustentando posições que os envergonhariam há 50 anos... Respondemos que não é possível esquecer.

Hoje, quando dizemos que “não é possível esquecer”, é porque sabemos que a história não passa: ela, como esses rios perenes, esculpe seu leito ao correr.

Hoje, se queremos retomar nossa capacidade de pensar e de criar outras possibilidades de vida, mais plenas de sentido propriamente humano, vale a pena conhecer bem o leito deste rio em que todos nós nadamos, no Brasil, desde pelo menos 1964.




(Aos companheiros Demian Melo, Felipe Demier e Rejane Hoeveler – sempre às voltas com os caminhos e descaminhos da memória).