26 de mai. de 2014

O que você faria? Parte IV.

por Victor Neves

Agora, amadureço a questão.
Nós prontamente solidários com a memória
(Compromisso sem perigos)
E o desespero irreparável dos mortos,
Se àquele tempo presentes e vivos,
Como veríamos o III Reich?”
José Carlos Capinam – Inquisitorial.

04. "Intimismo à sombra do poder" e manutenção da ordem

Aqui estávamos na última coluna: a passagem, estimulada – e, até certo ponto, provocada – pela ditadura, de uma cultura hegemonicamente “de contestação” a uma “de constatação” reatualizou no Brasil a velha tendência ao intimismo à sombra do poder.

E de que se trata isso, afinal?

A ideia, trabalhada por Carlos Nelson Coutinho em 1972, é a seguinte: os intelectuais, “descrentes da possibilidade de influir decisivamente sobre as mudanças sociais (...), tendem a evadir-se da realidade concreta, a colocar-se num terreno aparentemente autônomo, mas cuja autonomia é respeitada precisamente na medida em que não se põem em jogo as questões decisivas da vida social”. A referida postura “intimista” pode perfeitamente se combinar com um inconformismo declarado, com um “mal-estar subjetivamente sincero diante da situação social dominante” e diante das condições em que se leva a própria vida. Este foi o caso, por exemplo, de boa parte da assim chamada “poesia marginal” e de parte do cancioneiro produzido por alguns dos herdeiros do tropicalismo após 1968.

O intimismo à sombra do poder, argumenta o analista, é muito comum em países como o Brasil em que as transformações sociais e políticas (mesmo as mais profundas) se deram geralmente “pelo alto”, combinando os acordos entre elites dirigentes com o impedimento da participação política ativa da classe trabalhadora. Afinal, nestes países a história tende a aparecer como algo “que vem de fora”, que é “feito pelos grandes”, e sobre o qual não adianta buscar influir. Houve um ensaio de reversão desta tendência ao intimismo à sombra do poder na virada para os anos 1960, com a mobilização massiva de trabalhadores do campo e da cidade que exigiam participar ativamente da vida política brasileira. Os intelectuais, notando que a realidade efetivamente se movia, tenderam a se radicalizar, e boa parte se ligou ativamente ao processo de lutas então em curso. A produção cultural brasileira passou a refletir e buscar influir sobre uma realidade que se move e pode ser transformada. Este deslocamento está na raiz da “inteligência excepcional” que atingiu o país no início dos anos 60, quando a vida cultural brasileira se afastou de seu velho intimismo à sombra do poder, se enriquecendo.

Tal processo foi abortado pela ditadura empresarial-militar de 1964, e a conclusão da passagem do Brasil à “modernidade capitalista” se deu, pelas mãos dos militares (mas em nome do grande capital), mais uma vez pelo alto e ativamente comprometida com o redesenho de nossa vida cultural, preparatório para a “modernização” socioeconômica vindoura.

Quanto a nossos intelectuais... É preciso ter em mente que a produção cultural “intimista” raramente apoia diretamente a ordem de coisas existente. Entretanto, há diferentes maneiras de se comprometer com a ordem vigente.

Por um lado, se pode apoiá-la afirmando-a. Trata-se de louvá-la explicitamente ou de negar apenas aspectos muito superficiais, comprometendo-se ativamente com o status quo. É o que fazem, no Brasil e alhures, os chamados “grandes meios de comunicação” como a Rede Globo, a revista Veja e congêneres. Infelizmente, chega-se mesmo ao ponto de mentir para sustentar barbaridades como o massacre cotidiano a que são submetidas as populações mais pobres, a repressão brutal a manifestações políticas, a privatização de serviços públicos etc.

Por outro lado, se pode apoiar o existente negando-o. Isso mesmo: pode-se apoiar o que existe através de sua negação aparentemente radical. Se se nega o mundo todo em seu conjunto, se se o nega abstratamente, se se o nega retirando desta negação seu conteúdo historicamente determinado, cai-se na apologia indireta do que existe – afinal, negando-se tudo se nega também a possibilidade de trabalhar pela transformação de algo1.

Esta segunda maneira de aceitar o que existe (de apoiá-lo indiretamente, através de sua negação aparente) é perfeitamente compatível com uma postura de protesto resignado nos marcos do intimismo à sombra do poder.

05. E você? O que você faria?

Aqui chegamos ao ponto que motivou o início desta pequena série de textos... Eles vêm sendo publicados entre dois “grandes eventos”, intimamente relacionados e que dizem muito sobre a vida no Rio de Janeiro e no Brasil de hoje: a Copa do Mundo, prestes a começar, e a remoção da Favela da Telerj, da qual imagino que quem está lendo este texto ainda se lembre.

A questão é: como a “opinião pública” brasileira se tem posicionado sobre os acontecimentos em questão? Quem tem se colocado contra as barbaridades ora em curso? Quem compreendeu a urgência da situação? E mais: quem se diz contra é consequente com essa posição? Como vai, no Brasil de hoje, o velho intimismo à sombra do poder reatualizado pela ditadura empresarial-militar? Teria ele algo a ver com Copas e Olimpíadas?

Com estas perguntas se encerra a pequena série “O que você faria?”. Com elas, com o poema abaixo (não por acaso, exatamente de 1964) e com esta última pergunta: e você? O que você está fazendo agora?

INQUISITORIAL
(José Carlos Capinam – 1964)

I
Cúmplices da comoção moderna,
Galhofamos no teatro e no cinema
Ante o III Reich.

Galhofamos do desencontro
Entre discurso e realidade.

(Mas a perda do sincrônico
Se dá por nossa memória
Ou pelo dedo de Chaplin.

Ao tempo real, eram ambos coerentes:
Discurso e realidade.)

II
Quando um soldado capenga
Surgir em cena,
Não compreenda, e se compreender,
Não ria – porque não estamos
Ante um soldado nem ante o III Reich.

Quando um tanque se precipitar
Da ponte,
Não cante, e se cantar,
Não dance – porque não estamos
Ante a firmeza do tanque e a verdadeira ponte.

E quando um gueto se sublevar
E for morto heroicamente,
Não comente, e se comentar,
Não glorifique – porque não houve heróis,
Só houve homens no III Reich.

E, ademais, não se diga
Indigno o III Reich.
Porque não houve indignidades,
Só houve o tempo.
O tempo não tem adjetivos: é ou foi e faz-se.

III
Agora, amadureço a questão.

Nós prontamente solidários com a memória
(Compromisso sem perigos)
E o desespero irreparável dos mortos,
Se àquele tempo presentes e vivos,

Como veríamos o III Reich?

IV
(Para responder, não te transfiras
A cômodo, como agora,
Busca adquirir a cidadania alemã
E depois, estável, responde:

Ao curso de fuzis e verdades da época
considerando o risco de tua estabilidade –
Operário ou proprietário da Mercedes Benz,

O que farias no III Reich?)

V
Em nós o tempo é o mais humano,
E hoje de homem não temos senão o tempo ganho,
Fração de um tempo maior
Que a vagar se compõe, tão árduo.

Por isso pergunto:
Em todos os tribunais passados,
Que lado ocuparíamos

Pois que somos mas não somos ante o tempo
E também seus acidentes
Históricos e geográficos,
As estações a carência e os meses?

Se ainda fosse abril,
O que faríamos sendo em tempo do III Reich?

VI
Agora que estimamos
A incerteza
Ante o III Reich;

Agora que estimamos
Menos perigosa
A participação da memória

E muito menos eficaz;
Pergunto: tu, ante o presente,
Como te defines ao que será passado?

Há urgência de resposta, antes que a noite chegue.

Carregarás fardos para evitar
(Repara que o rio corre e a noite vem como onda)
Ou deixarás que apenas sejamos o tempo
E irreparável memória?

VII
Como existir e ser ante o III Reich
E qualquer um outro tempo de inquisição?

Diante escolha dada sem senões:
Vida ou absolutamente nada,
O nada mais roído,
O nada mais raspado,
Sem pontes ou rios, sem rios, sem pontes
Às fugas e navegações?

Ao dizermos sim, estamos com eles.
Não, e nos perderiam de tudo, mesmo de nossa intimidade,
E, na praça,
Sorririam de nossa solidão, nossa extrema solidão, nossa solidão na morte,
Consequência deste caminho de contradição.

(Quando semelhante escolha
Nos vierem pedir,
Que coisa diremos
Se só temos a vida,
A necessidade de preservá-la
E a compulsão de defini-la?

O que agir, se o que agimos
Nos define a vida
E a consciência
Desta mesma vida
Ante seus momentos
E ela mesma ainda?)

Ah, como louvamos o tempo
Que nos põe distantes,
Só importando em memória
A nossa escolha e saída.

VIII
(Como nenhum roteiro são
As navegações do barco,

Não há previsões que possam conceber o que seja
Anterior ao seu ato.

Qual a determinação da cidade
E do caminho ideal de abordagem

Não evitam a pedra
Calmaria e tempestade.

Portanto, ainda mais se complica a questão
Do que ser ante o III Reich.)

IX
Nada a perguntar
Se esquemática, fatal e somente

Judeu fosse judeu
E operário, operário.

E não como são:
Eles e, inclusive, o III Reich.

(Ao existir nos pomos, às vezes,
Cúmplices da contradição.

De outra forma, nada seria dramático,
A simples previsão do roteiro salvaria o barco.)

X
Pois, sendo judeu ou operário
O que fazer ante o III Reich?

Se pretensa vinculação mais ampla, de homem,
Te impede de responder

Com vinculação real de raça ou classe,
Onde não se é bom ou mau homem,

Mas mau negociante ou bom operário,
Lembra-te do acordo de ato e consciência que possui o III Reich.

Então, como te farias um homem
Ante o III Reich?

(Isto não é tão simples como aplaudir ou chorar,
Comprometido com Chaplin.)

XI
Tenho medo da imaginação
E de todas as travessias
Onde me possa superar a correnteza do rio.
Sinto medo de mim solto às divagações,
Onde não me determino.
(Mas que faria se já não fosse outono
E já não estivesse na outra margem do rio?)

Dou graças aos que passaram
E submergiram.  Bendigo os que se comprometeram
Com o erro, para que eu não tivesse
De vacilar quanto ao lugar de vau
Para atravessar este rio
Da existência, tão largo, tão humano e extensamente largo,

E arrancar o fruto do outro lado.

XII
Não quis dizer que a tudo justifica o tempo:
Fora, fazê-lo, assaz temerário.
Nem tentei um poema para desesperar:
Diverge o intento.  Quero dizer que o tempo não reflui
E inexiste chance de se provar a resposta
Do que seríamos ante o III Reich, mãos de SS ou meras mãos de inocente,
Participação mais grave que a dos que fizeram por bom senso
Ou interesse indefensável.

Escrevi para então,
Aos que dizem não posso, tenho limitações,
Posso ser posto de lado, à margem de direitos e comodidades,
Ou aos que têm dúvida de que a mudança é ótima.
Escrevi aos lúcidos, aos que mais rápido entendem o símbolo
E outra qualquer linguagem, aos que, entretanto, calam.
Acuso este bom senso de salvar-se
Roubando balsas ao barco
Que se tomou para viagem.

Mas tenho certeza de que, se apenas
Esses existissem, ainda amargaríamos o III Reich,
Como fruto constante
Na boca:

Fruto que não se come nem se joga fora.

Escrevo e sei que a todo tempo houve outros,
Com estes aprendo e me comovo,
E mesmo que soçobre o barco num relativo naufrágio,
Me mantenho atento às perseguições do porto.




1 Um exemplo banal: alguém vê a polícia, na televisão, removendo com brutalidade a Favela da Telerj (ou Pinheirinhos, ou tantas...) e comenta algo como “é sempre a mesma coisa, esta maldade do ser humano (ou ‘do brasileiro’) me deixa realmente triste”. Essa pessoa, por mais que esteja negando subjetivamente o existente (“isto me faz mal, me deixa triste”), o está aceitando como natural (“sempre foi assim, assim é, e assim sempre será”, “os brasileiros são assim mesmo” e, portanto, não há o que fazer...). Um caso de apologia indireta do existente em um produto cultural brasileiro recente é o do filme Tropa de Elite 2 (a culpa é “do sistema” ou “dos políticos”, e como eles “sempre são corruptos” só resta lamentar). Muitos casos podem ser encontrados na produção cultural brasileira posterior ao AI-5.

13 de mai. de 2014

O que você faria? Parte III.

por Victor Neves

03. Reescrita da história e “vazio cultural”

A expressão “vazio cheio” deixa margem a dúvidas. De fato, há diferentes interpretações sobre o que se teria passado entre os anos 60 e 80, no campo da cultura, no Brasil.

Há quem enxergue na produção cultural durante o “vazio” do AI-5 inúmeras formas de resistência, mesmo que velada ou centrada na denúncia das consequências da ditadura sobre certos indivíduos ou estratos sociais. Um exemplo desta “resistência” estaria na chamada “poesia marginal”, que mostraria o dilaceramento do indivíduo impotente para lutar contra o horror. Esta interpretação, no entanto, me parece insuficiente (quando não simplesmente equivocada), justamente porque não capta a tendência principal então em curso.

Quer me parecer que o que ocorreu neste período – e por isso a expressão “vazio cheio” para se referir à cultura sob ele é bastante adequada – foi que nele se esvaziou um programa de intervenção no campo cultural, ao mesmo tempo em que se viabilizou sua substituição por outro programa. Isto quer dizer que, no período, tratou-se de remodelar a sensibilidade média da intelligentsia brasileira – em última, de atrofiar esta sensibilidade em relação a tudo o que diz respeito ao desenrolar da vida social sob o capitalismo e os inumeráveis problemas relacionados.

Atrofiou-se a sensibilidade do intelectual brasileiro (aí compreendido o artista) para tudo o que diz respeito à vida realmente existente fora dos limites das quatro paredes de sua sala – ou das paredes do seu “self”. Neste rol podemos enumerar, apenas a título de exemplo: a dureza da vida dos estratos mais pauperizados da classe trabalhadora, sistematicamente reprimidos e controlados por um Estado que tem sua dimensão punitiva-penal cada vez mais alargada; seu próprio processo de proletarização, ou seja, a cada vez mais universal transformação do intelectual em trabalhador intelectual (assalariado); a mercantilização geral da vida e da cultura etc.

Em artigo anteriormente publicado nesta coluna, enumerei por alto através de que expedientes isto se deu, no Brasil, ao longo da ditadura empresarial-militar: combinação entre “censura prévia; brutal repressão política; expansão em escala inédita e ‘racionalizada’ do ensino universitário; consolidação de um mercado nacional de bens simbólicos no Brasil”. Aqui, vale uma observação: esta consolidação sempre teve um aspecto dirigido: inicialmente através da combinação entre censura prévia e investimentos estatais em certos veículos (através, por exemplo, da compra de cotas de publicidade em revistas); depois – e até hoje – através do último procedimento combinado à reformatação da “demanda social”, já que o primeiro (a censura) deixou de ser necessário quando os próprios operadores do mercado cultural já estavam devidamente aptos a selecionar o que “deve” e o que “não deve” ser publicado, o que “é ideológico e portanto não interessa ao público” e o que “é interessante”.

Mesmo considerando que os governos durante a ditadura, ao que tudo indica, não tinham um controle assim tão absoluto sobre a vida cultural quanto gostariam de fazer crer, o conjunto de procedimentos enumerados, combinado ao medo (fundamentado) de ir em cana numa situação em que isto simplesmente não parecia valer a pena – uma situação em que, para muitos, a batalha já parecia perdida –, cumpriu muito bem seu papel. Sem meias palavras: acovardou e amesquinhou a vida intelectual brasileira.

Tomando emprestada definição a que chegou José Paulo Netto analisando a literatura do período em 1974, temos o seguinte: no período do “vazio cultural” sob o AI-5 se passou de uma literatura de contestação a uma literatura de constatação. Me parece que a afirmação é válida para a produção cultural do período tomada no geral, e não apenas para a literatura1. Ou melhor: me parece que ela aponta corretamente a tendência que prevaleceu – ainda que as transformações no campo das ciências humanas tenham se desenvolvido em ritmo diferenciado, “menos linearmente” (e me parece que este “desenvolvimento desigual” entre ciência e arte no campo cultural brasileiro neste período mereceria ser estudado de modo mais aprofundado).

Esta passagem da contestação à constatação2 teve consequências: a principal é que, sob a capa da novidade, se reatualizou no Brasil velha tendência apontada por Carlos Nelson Coutinho, já nos anos 70, como tônica de nossa vida cultural: a tendência ao intimismo à sombra do poder. Mas este é o tema da próxima coluna, a IV desta sequência que tenta mostrar um pouco como o golpe marcou e marca o conjunto de nossa vida intelectual – até hoje.

(continua na próxima coluna...)

1 Este trânsito pode ser percebido esteticamente através de pequenos “exercícios comparativos” com obras de arte representativas de um mesmo autor em cada uma das duas diferentes situações. Deixo aqui algumas breves sugestões, referentes a diferentes campos da cultura (e espero retomar o problema no futuro):
  1. de Tom Zé, escutar a música “Parque Industrial” (disco: “Tropicália”, 1968) seguida por “Todos os olhos” (disco: “Todos os olhos”, 1973).
  2. de José Carlos Capinam, ler o poema “Inquisitorial” (publicado pela primeira vez no livro de mesmo nome, no emblemático ano de 1964) seguido por “Anima” (presente na coletânea “26 poetas hoje”, organizada por Heloísa Buarque de Holanda e publicada em 1975). Os dois estão disponíveis na internet.
  3. de Arnaldo Jabor, assistir ao filme “O circo” (de 1965) seguido por “Eu te amo” (de 1981).

2 Esquematicamente: enquanto uma obra de arte de contestação parte dos problemas da mulher e do homem concretos, tomados em determinado momento e espaço, figurando situações que têm certa dimensão moral que exige solução (que pode ser apresentada ou não na obra), na obra de constatação apenas se constata um estado interior tomado em abstrato – que está no artista, que pode também estar no receptor da obra, ou que pode estar num homem qualquer de uma era qualquer, já que se rompem as mediações que levam à concretização histórico-social do conteúdo da obra. Quando se rompem estas mediações, borra-se também o sentimento de necessidade de superação do problema, tido como “eterno”.

5 de mai. de 2014

O que você faria? Parte II.

por Victor Neves

“É sempre bom lembrar
que um copo vazio
está cheio de ar”.
Gilberto Gil – Copo Vazio.

02. Amnésia na esquerda e reescrita da história

Retomando: o “emburrecimento da sociedade brasileira”, idealizado e concretizado pela ditadura empresarial-militar vigente entre 1964 e 1985, teve como seu principal mecanismo o apagamento seletivo de certa memória coletiva nacional.

Avancemos: apagar, no que tange à História, é sempre reescrever. O apagamento seletivo que mencionei implicou numa reorientação imediata da memória que deu e vem dando ensejo a uma reescrita da história – operação fundamental para consolidar a vitória dos vencedores e de seu projeto de país. O apagamento foi seletivo porque dizia respeito ao apagamento da experiência histórica de luta de uma classe – a saber, a classe trabalhadora brasileira. Mas implicou também numa reorientação do conjunto da esfera cultural cuja característica mais notável é o rompimento dos laços entre os produtores de cultura e os organismos políticos e culturais daquela classe – traço que se estende até hoje, infelizmente.

Explico-me. A sociedade brasileira ingressava, pela via da modernização conservadora (iniciada nos anos 30 sob Vargas, mas que deu um salto de qualidade sob a ditadura empresarial-militar de 64), no clube das nações de capitalismo maduro ou tardio. Para concluir este trânsito foi necessário quebrar as possibilidades de resistência articuladas em torno da classe trabalhadora da cidade e do campo. E isto porque, como sempre, era ela que teria de pagar a conta do “progresso”. Vale lembrar: em 1964, estas “possibilidades de resistência” não eram apenas isso, mas tinham forte efetividade histórica e apontavam para a disputa de projeto de país. Afinal, os mais confiáveis estudos sobre a época mostram que era a “gente simples”, a “massa”, a “plebe” que estava massivamente mobilizada e exigindo participar da vida política e cultural da “nação” – e não de qualquer maneira e com quaisquer propostas, mas em torno de organizações e propostas definidas e em disputa.

Neste ponto, é necessário não cair na armadilha do economicismo: a reorientação no campo da cultura brasileira, por mais que também e posteriormente responda a modificações viabilizadas (e conduzidas, e operadas) pela ditadura na estrutura econômica do país, foi num primeiro momento intencionalmente produzida, através de uma política cultural especificamente voltada para aquele fim – qual seja, para assegurar que não restasse nada de pé, a não ser as “ruínas arqueológicas” da vida intelectual anterior ao golpe. Em termos mais “clássicos” e em voga na época: para que as transformações na infraestrutura fossem possíveis foi necessário passar a borracha na esfera da superestrutura. Não à toa, o grande romance brasileiro do período é justamente o “Incidente em Antares” de Érico Veríssimo, cujo ponto culminante é a decisão por parte das elites de Antares de realizar a “operação-borracha” de modo a que todos se esquecessem de que um dia, ali, os (nossos) mortos se levantaram. É como na canção: “começar de novo”...

Mas não do zero.

Desde a Antiguidade, procedimento muito comum na arquitetura é aproveitar as ruínas de prédios de povos desaparecidos ou vencidos em novas construções, ao estilo e respondendo às finalidades de seus ocupantes atuais. Podemos dizer que algo assim aconteceu no Brasil, no campo da arquitetura das ideias. Aqui, não houve apenas a destruição de um discurso de resistência que “contaminava” o conjunto da esfera cultural pré-64. Houve sua substituição por outro(s) discurso(s) – e aqui sim, no plural, correspondendo bem à “pluralidade” característica de uma sociedade capitalista madura. No mais, nesta substituição foram aproveitados certos pontos-chave das ideias que compunham o quadro teórico-crítico do campo anteriormente hegemônico, ressignificando-os através de sua inserção em outras constelações de ideias – em outro conjunto de significantes (é o caso de pontos como “alienação”, “democracia”, “desenvolvimento”, “dependência”, “imperialismo”, manipulação”, entre outros...). E, como veremos adiante, esta substituição mostrou seu peso inclusive quando a classe trabalhadora brasileira voltou a se mobilizar, nos anos 80.

Tal reorientação / substituição ocorreu no contexto do que se convencionou chamar, sob a vigência do AI-5, de “vazio cultural”, apelido dado ao período em referência, evidentemente, ao contraste entre a efervescência do período anterior e o (aparente) silêncio resultante do endurecimento da ditadura.

Entretanto, como já sugeriram alguns analistas na própria época (como Carlos Nelson Coutinho e Zuenir Ventura, ambos escrevendo para a revista Visão nos anos 1970), para compreender adequadamente o que se passou seria melhor definir este “vazio” como um “vazio cheio”. E isto é fundamental para que sejamos capazes de enxergar como se operou aquela reorientação do campo ideológico – como se esvaziou o debate político-cultural de um conteúdo e se o preencheu com outro. É o que veremos na próxima coluna.


(continua na próxima coluna...)