por Victor Neves
“Agora, amadureço a questão.
Nós prontamente solidários com a memória
(Compromisso sem perigos)
E o desespero irreparável dos mortos,
Se àquele tempo presentes e vivos,
Como veríamos o III Reich?”
José Carlos Capinam – Inquisitorial.
04. "Intimismo à sombra do poder" e manutenção da
ordem
Aqui estávamos na última coluna: a passagem, estimulada – e, até certo ponto, provocada – pela ditadura, de uma cultura hegemonicamente “de contestação” a uma “de constatação” reatualizou no Brasil a velha tendência ao intimismo à sombra do poder.
E de que se trata isso, afinal?
A ideia, trabalhada por Carlos Nelson Coutinho em 1972, é a seguinte: os intelectuais, “descrentes da possibilidade de influir decisivamente sobre as mudanças sociais (...), tendem a evadir-se da realidade concreta, a colocar-se num terreno aparentemente autônomo, mas cuja autonomia é respeitada precisamente na medida em que não se põem em jogo as questões decisivas da vida social”. A referida postura “intimista” pode perfeitamente se combinar com um inconformismo declarado, com um “mal-estar subjetivamente sincero diante da situação social dominante” e diante das condições em que se leva a própria vida. Este foi o caso, por exemplo, de boa parte da assim chamada “poesia marginal” e de parte do cancioneiro produzido por alguns dos herdeiros do tropicalismo após 1968.
O intimismo à sombra do poder, argumenta o analista, é muito comum em países como o Brasil em que as transformações sociais e políticas (mesmo as mais profundas) se deram geralmente “pelo alto”, combinando os acordos entre elites dirigentes com o impedimento da participação política ativa da classe trabalhadora. Afinal, nestes países a história tende a aparecer como algo “que vem de fora”, que é “feito pelos grandes”, e sobre o qual não adianta buscar influir. Houve um ensaio de reversão desta tendência ao intimismo à sombra do poder na virada para os anos 1960, com a mobilização massiva de trabalhadores do campo e da cidade que exigiam participar ativamente da vida política brasileira. Os intelectuais, notando que a realidade efetivamente se movia, tenderam a se radicalizar, e boa parte se ligou ativamente ao processo de lutas então em curso. A produção cultural brasileira passou a refletir e buscar influir sobre uma realidade que se move e pode ser transformada. Este deslocamento está na raiz da “inteligência excepcional” que atingiu o país no início dos anos 60, quando a vida cultural brasileira se afastou de seu velho intimismo à sombra do poder, se enriquecendo.
Tal processo foi abortado pela ditadura empresarial-militar de 1964, e a conclusão da passagem do Brasil à “modernidade capitalista” se deu, pelas mãos dos militares (mas em nome do grande capital), mais uma vez pelo alto e ativamente comprometida com o redesenho de nossa vida cultural, preparatório para a “modernização” socioeconômica vindoura.
Quanto a nossos intelectuais... É preciso ter em mente que a produção cultural “intimista” raramente apoia diretamente a ordem de coisas existente. Entretanto, há diferentes maneiras de se comprometer com a ordem vigente.
Por um lado, se pode apoiá-la afirmando-a. Trata-se de louvá-la explicitamente ou de negar apenas aspectos muito superficiais, comprometendo-se ativamente com o status quo. É o que fazem, no Brasil e alhures, os chamados “grandes meios de comunicação” como a Rede Globo, a revista Veja e congêneres. Infelizmente, chega-se mesmo ao ponto de mentir para sustentar barbaridades como o massacre cotidiano a que são submetidas as populações mais pobres, a repressão brutal a manifestações políticas, a privatização de serviços públicos etc.
Por outro lado, se pode apoiar o existente negando-o. Isso mesmo: pode-se apoiar o que existe através de sua negação aparentemente radical. Se se nega o mundo todo em seu conjunto, se se o nega abstratamente, se se o nega retirando desta negação seu conteúdo historicamente determinado, cai-se na apologia indireta do que existe – afinal, negando-se tudo se nega também a possibilidade de trabalhar pela transformação de algo1.
Esta segunda maneira de aceitar o que existe (de apoiá-lo indiretamente, através de sua negação aparente) é perfeitamente compatível com uma postura de protesto resignado nos marcos do intimismo à sombra do poder.
Aqui estávamos na última coluna: a passagem, estimulada – e, até certo ponto, provocada – pela ditadura, de uma cultura hegemonicamente “de contestação” a uma “de constatação” reatualizou no Brasil a velha tendência ao intimismo à sombra do poder.
E de que se trata isso, afinal?
A ideia, trabalhada por Carlos Nelson Coutinho em 1972, é a seguinte: os intelectuais, “descrentes da possibilidade de influir decisivamente sobre as mudanças sociais (...), tendem a evadir-se da realidade concreta, a colocar-se num terreno aparentemente autônomo, mas cuja autonomia é respeitada precisamente na medida em que não se põem em jogo as questões decisivas da vida social”. A referida postura “intimista” pode perfeitamente se combinar com um inconformismo declarado, com um “mal-estar subjetivamente sincero diante da situação social dominante” e diante das condições em que se leva a própria vida. Este foi o caso, por exemplo, de boa parte da assim chamada “poesia marginal” e de parte do cancioneiro produzido por alguns dos herdeiros do tropicalismo após 1968.
O intimismo à sombra do poder, argumenta o analista, é muito comum em países como o Brasil em que as transformações sociais e políticas (mesmo as mais profundas) se deram geralmente “pelo alto”, combinando os acordos entre elites dirigentes com o impedimento da participação política ativa da classe trabalhadora. Afinal, nestes países a história tende a aparecer como algo “que vem de fora”, que é “feito pelos grandes”, e sobre o qual não adianta buscar influir. Houve um ensaio de reversão desta tendência ao intimismo à sombra do poder na virada para os anos 1960, com a mobilização massiva de trabalhadores do campo e da cidade que exigiam participar ativamente da vida política brasileira. Os intelectuais, notando que a realidade efetivamente se movia, tenderam a se radicalizar, e boa parte se ligou ativamente ao processo de lutas então em curso. A produção cultural brasileira passou a refletir e buscar influir sobre uma realidade que se move e pode ser transformada. Este deslocamento está na raiz da “inteligência excepcional” que atingiu o país no início dos anos 60, quando a vida cultural brasileira se afastou de seu velho intimismo à sombra do poder, se enriquecendo.
Tal processo foi abortado pela ditadura empresarial-militar de 1964, e a conclusão da passagem do Brasil à “modernidade capitalista” se deu, pelas mãos dos militares (mas em nome do grande capital), mais uma vez pelo alto e ativamente comprometida com o redesenho de nossa vida cultural, preparatório para a “modernização” socioeconômica vindoura.
Quanto a nossos intelectuais... É preciso ter em mente que a produção cultural “intimista” raramente apoia diretamente a ordem de coisas existente. Entretanto, há diferentes maneiras de se comprometer com a ordem vigente.
Por um lado, se pode apoiá-la afirmando-a. Trata-se de louvá-la explicitamente ou de negar apenas aspectos muito superficiais, comprometendo-se ativamente com o status quo. É o que fazem, no Brasil e alhures, os chamados “grandes meios de comunicação” como a Rede Globo, a revista Veja e congêneres. Infelizmente, chega-se mesmo ao ponto de mentir para sustentar barbaridades como o massacre cotidiano a que são submetidas as populações mais pobres, a repressão brutal a manifestações políticas, a privatização de serviços públicos etc.
Por outro lado, se pode apoiar o existente negando-o. Isso mesmo: pode-se apoiar o que existe através de sua negação aparentemente radical. Se se nega o mundo todo em seu conjunto, se se o nega abstratamente, se se o nega retirando desta negação seu conteúdo historicamente determinado, cai-se na apologia indireta do que existe – afinal, negando-se tudo se nega também a possibilidade de trabalhar pela transformação de algo1.
Esta segunda maneira de aceitar o que existe (de apoiá-lo indiretamente, através de sua negação aparente) é perfeitamente compatível com uma postura de protesto resignado nos marcos do intimismo à sombra do poder.
05. E você? O que você faria?
Aqui chegamos ao ponto que motivou o início desta pequena série de textos... Eles vêm sendo publicados entre dois “grandes eventos”, intimamente relacionados e que dizem muito sobre a vida no Rio de Janeiro e no Brasil de hoje: a Copa do Mundo, prestes a começar, e a remoção da Favela da Telerj, da qual imagino que quem está lendo este texto ainda se lembre.
A questão é: como a “opinião pública” brasileira se tem posicionado sobre os acontecimentos em questão? Quem tem se colocado contra as barbaridades ora em curso? Quem compreendeu a urgência da situação? E mais: quem se diz contra é consequente com essa posição? Como vai, no Brasil de hoje, o velho intimismo à sombra do poder reatualizado pela ditadura empresarial-militar? Teria ele algo a ver com Copas e Olimpíadas?
Com estas perguntas se encerra a pequena série “O que você faria?”. Com elas, com o poema abaixo (não por acaso, exatamente de 1964) e com esta última pergunta: e você? O que você está fazendo agora?
Aqui chegamos ao ponto que motivou o início desta pequena série de textos... Eles vêm sendo publicados entre dois “grandes eventos”, intimamente relacionados e que dizem muito sobre a vida no Rio de Janeiro e no Brasil de hoje: a Copa do Mundo, prestes a começar, e a remoção da Favela da Telerj, da qual imagino que quem está lendo este texto ainda se lembre.
A questão é: como a “opinião pública” brasileira se tem posicionado sobre os acontecimentos em questão? Quem tem se colocado contra as barbaridades ora em curso? Quem compreendeu a urgência da situação? E mais: quem se diz contra é consequente com essa posição? Como vai, no Brasil de hoje, o velho intimismo à sombra do poder reatualizado pela ditadura empresarial-militar? Teria ele algo a ver com Copas e Olimpíadas?
Com estas perguntas se encerra a pequena série “O que você faria?”. Com elas, com o poema abaixo (não por acaso, exatamente de 1964) e com esta última pergunta: e você? O que você está fazendo agora?
INQUISITORIAL
(José Carlos Capinam –
1964)
I
Cúmplices da comoção
moderna,
Galhofamos no teatro e no
cinema
Ante o III Reich.
Galhofamos do desencontro
Entre discurso e realidade.
(Mas a perda do sincrônico
Se dá por nossa memória
Ou pelo dedo de Chaplin.
Ao tempo real, eram ambos
coerentes:
Discurso e realidade.)
II
Quando um soldado capenga
Surgir em cena,
Não compreenda, e se
compreender,
Não ria – porque não
estamos
Ante um soldado nem ante o
III Reich.
Quando um tanque se
precipitar
Da ponte,
Não cante, e se cantar,
Não dance – porque não
estamos
Ante a firmeza do tanque e a
verdadeira ponte.
E quando um gueto se
sublevar
E for morto heroicamente,
Não comente, e se comentar,
Não glorifique – porque
não houve heróis,
Só houve homens no III
Reich.
E, ademais, não se diga
Indigno o III Reich.
Porque não houve
indignidades,
Só houve o tempo.
O tempo não tem adjetivos:
é ou foi e faz-se.
III
Agora, amadureço a questão.
Nós prontamente solidários
com a memória
(Compromisso sem perigos)
E o desespero irreparável
dos mortos,
Se àquele tempo presentes e
vivos,
Como veríamos o III Reich?
IV
(Para responder, não te
transfiras
A cômodo, como agora,
Busca adquirir a cidadania
alemã
E depois, estável,
responde:
Ao curso de fuzis e verdades
da época
– considerando o risco de
tua estabilidade –
Operário ou proprietário
da Mercedes Benz,
O que farias no III Reich?)
V
Em nós o tempo é o mais
humano,
E hoje de homem não temos
senão o tempo ganho,
Fração de um tempo maior
Que a vagar se compõe, tão
árduo.
Por isso pergunto:
Em todos os tribunais
passados,
Que lado ocuparíamos
Pois que somos mas não
somos ante o tempo
E também seus acidentes
Históricos e geográficos,
As estações a carência e
os meses?
Se ainda fosse abril,
O que faríamos sendo em
tempo do III Reich?
VI
Agora que estimamos
A incerteza
Ante o III Reich;
Agora que estimamos
Menos perigosa
A participação da memória
E muito menos eficaz;
Pergunto: tu, ante o
presente,
Como te defines ao que será
passado?
Há urgência de resposta,
antes que a noite chegue.
Carregarás fardos para
evitar
(Repara que o rio corre e a
noite vem como onda)
Ou deixarás que apenas
sejamos o tempo
E irreparável memória?
VII
Como existir e ser ante o
III Reich
E qualquer um outro tempo de
inquisição?
Diante escolha dada sem
senões:
Vida ou absolutamente nada,
O nada mais roído,
O nada mais raspado,
Sem pontes ou rios, sem
rios, sem pontes
Às fugas e navegações?
Ao dizermos sim, estamos com
eles.
Não, e nos perderiam de
tudo, mesmo de nossa intimidade,
E, na praça,
Sorririam de nossa solidão,
nossa extrema solidão, nossa solidão na morte,
Consequência deste caminho
de contradição.
(Quando semelhante escolha
Nos vierem pedir,
Que coisa diremos
Se só temos a vida,
A necessidade de preservá-la
E a compulsão de defini-la?
O que agir, se o que agimos
Nos define a vida
E a consciência
Desta mesma vida
Ante seus momentos
E ela mesma ainda?)
Ah, como louvamos o tempo
Que nos põe distantes,
Só importando em memória
A nossa escolha e saída.
VIII
(Como nenhum roteiro são
As navegações do barco,
Não há previsões que
possam conceber o que seja
Anterior ao seu ato.
Qual a determinação da
cidade
E do caminho ideal de
abordagem
Não evitam a pedra
Calmaria e tempestade.
Portanto, ainda mais se
complica a questão
Do que ser ante o III
Reich.)
IX
Nada a perguntar
Se esquemática, fatal e
somente
Judeu fosse judeu
E operário, operário.
E não como são:
Eles e, inclusive, o III
Reich.
(Ao existir nos pomos, às
vezes,
Cúmplices da contradição.
De outra forma, nada seria
dramático,
A simples previsão do
roteiro salvaria o barco.)
X
Pois, sendo judeu ou
operário
O que fazer ante o III
Reich?
Se pretensa vinculação
mais ampla, de homem,
Te impede de responder
Com vinculação real de
raça ou classe,
Onde não se é bom ou mau
homem,
Mas mau negociante ou bom
operário,
Lembra-te do acordo de ato e
consciência que possui o III Reich.
Então, como te farias um
homem
Ante o III Reich?
(Isto não é tão simples
como aplaudir ou chorar,
Comprometido com Chaplin.)
XI
Tenho medo da imaginação
E de todas as travessias
Onde me possa superar a
correnteza do rio.
Sinto medo de mim solto às
divagações,
Onde não me determino.
(Mas que faria se já não
fosse outono
E já não estivesse na
outra margem do rio?)
Dou graças aos que passaram
E submergiram. Bendigo
os que se comprometeram
Com o erro, para que eu não
tivesse
De vacilar quanto ao lugar
de vau
Para atravessar este rio
Da existência, tão largo,
tão humano e extensamente largo,
E arrancar o fruto do outro
lado.
XII
Não quis dizer que a tudo
justifica o tempo:
Fora, fazê-lo, assaz
temerário.
Nem tentei um poema para
desesperar:
Diverge o intento.
Quero dizer que o tempo não reflui
E inexiste chance de se
provar a resposta
Do que seríamos ante o III
Reich, mãos de SS ou meras mãos de inocente,
Participação mais grave
que a dos que fizeram por bom senso
Ou interesse indefensável.
Escrevi para então,
Aos que dizem não posso,
tenho limitações,
Posso ser posto de lado, à
margem de direitos e comodidades,
Ou aos que têm dúvida de
que a mudança é ótima.
Escrevi aos lúcidos, aos
que mais rápido entendem o símbolo
E outra qualquer linguagem,
aos que, entretanto, calam.
Acuso este bom senso de
salvar-se
Roubando balsas ao barco
Que se tomou para viagem.
Mas tenho certeza de que, se
apenas
Esses existissem, ainda
amargaríamos o III Reich,
Como fruto constante
Na boca:
Fruto que não se come nem
se joga fora.
Escrevo e sei que a todo
tempo houve outros,
Com estes aprendo e me
comovo,
E mesmo que soçobre o barco
num relativo naufrágio,
Me mantenho atento às
perseguições do porto.
1
Um
exemplo banal: alguém vê a polícia, na televisão, removendo com
brutalidade a Favela da Telerj (ou Pinheirinhos, ou tantas...) e
comenta algo como “é sempre a mesma coisa, esta maldade do ser
humano (ou ‘do brasileiro’) me deixa realmente triste”. Essa
pessoa, por mais que esteja negando subjetivamente o existente
(“isto me faz mal, me deixa triste”), o está aceitando como
natural
(“sempre foi assim, assim é, e assim sempre será”, “os
brasileiros são assim mesmo” e, portanto, não há o que
fazer...). Um caso de apologia
indireta do existente
em um produto cultural brasileiro recente é o do filme Tropa de
Elite 2 (a culpa é “do sistema” ou “dos políticos”, e como
eles “sempre são corruptos” só resta lamentar). Muitos casos
podem ser encontrados na produção cultural brasileira posterior ao
AI-5.