por Victor Neves
“É
sempre bom lembrar
que um
copo vazio
está
cheio de ar”.
Gilberto
Gil – Copo Vazio.
02. Amnésia na esquerda e reescrita da história
Retomando: o “emburrecimento da sociedade brasileira”, idealizado
e concretizado pela ditadura empresarial-militar vigente entre 1964 e
1985, teve como seu principal mecanismo o apagamento seletivo
de certa memória coletiva nacional.
Avancemos: apagar, no que tange à História, é sempre reescrever.
O apagamento seletivo que mencionei implicou numa reorientação
imediata da memória que deu e vem dando ensejo a uma reescrita
da história – operação fundamental para consolidar a vitória
dos vencedores e de seu projeto de país. O apagamento foi
seletivo porque dizia respeito ao apagamento da experiência
histórica de luta de uma classe – a saber, a classe
trabalhadora brasileira. Mas implicou também numa reorientação
do conjunto da esfera cultural cuja característica mais notável
é o rompimento dos laços entre os produtores de cultura e os
organismos políticos e culturais daquela classe – traço que se
estende até hoje, infelizmente.
Explico-me. A sociedade brasileira ingressava, pela via da
modernização conservadora (iniciada nos anos 30 sob Vargas, mas que
deu um salto de qualidade sob a ditadura empresarial-militar
de 64), no clube das nações de capitalismo maduro ou tardio. Para
concluir este trânsito foi necessário quebrar as possibilidades de
resistência articuladas em torno da classe trabalhadora da cidade e
do campo. E isto porque, como sempre, era ela que teria de pagar a
conta do “progresso”. Vale lembrar: em 1964, estas
“possibilidades de resistência” não eram apenas isso, mas
tinham forte efetividade histórica e apontavam para a disputa de
projeto de país. Afinal, os mais confiáveis estudos sobre a época
mostram que era a “gente simples”, a “massa”, a “plebe”
que estava massivamente mobilizada e exigindo participar da vida
política e cultural da “nação” – e não de qualquer maneira
e com quaisquer propostas, mas em torno de organizações e propostas
definidas e em disputa.
Neste ponto, é necessário não cair na armadilha do economicismo: a
reorientação no campo da cultura brasileira, por mais que também
e posteriormente responda a modificações viabilizadas (e
conduzidas, e operadas) pela ditadura na estrutura econômica do
país, foi num primeiro momento intencionalmente produzida,
através de uma política cultural especificamente voltada para
aquele fim – qual seja, para assegurar que não restasse nada de
pé, a não ser as “ruínas arqueológicas” da vida intelectual
anterior ao golpe. Em termos mais “clássicos” e em voga na
época: para que as transformações na infraestrutura fossem
possíveis foi necessário passar a borracha na esfera da
superestrutura. Não à toa, o grande romance brasileiro do
período é justamente o “Incidente em Antares” de Érico
Veríssimo, cujo ponto culminante é a decisão por parte das elites
de Antares de realizar a “operação-borracha” de modo a que
todos se esquecessem de que um dia, ali, os (nossos) mortos se
levantaram. É como na canção: “começar de novo”...
Mas não do zero.
Desde a Antiguidade, procedimento muito comum na arquitetura é
aproveitar as ruínas de prédios de povos desaparecidos ou vencidos
em novas construções, ao estilo e respondendo às finalidades de
seus ocupantes atuais. Podemos dizer que algo assim aconteceu no
Brasil, no campo da arquitetura das ideias. Aqui, não houve
apenas a destruição de um discurso de resistência que
“contaminava” o conjunto da esfera cultural pré-64. Houve sua
substituição por outro(s) discurso(s) – e aqui sim, no
plural, correspondendo bem à “pluralidade” característica de
uma sociedade capitalista madura. No mais, nesta substituição foram
aproveitados certos pontos-chave das ideias que compunham o
quadro teórico-crítico do campo anteriormente hegemônico,
ressignificando-os através de sua inserção em outras
constelações de ideias – em outro conjunto de significantes (é o
caso de pontos como “alienação”, “democracia”,
“desenvolvimento”, “dependência”, “imperialismo”,
manipulação”, entre outros...). E, como veremos adiante, esta
substituição mostrou seu peso inclusive quando a classe
trabalhadora brasileira voltou a se mobilizar, nos anos 80.
Tal reorientação / substituição ocorreu no contexto do que se
convencionou chamar, sob a vigência do AI-5, de “vazio cultural”,
apelido dado ao período em referência, evidentemente, ao contraste
entre a efervescência do período anterior e o (aparente) silêncio
resultante do endurecimento da ditadura.
Entretanto, como já sugeriram alguns analistas na própria época
(como Carlos Nelson Coutinho e Zuenir Ventura, ambos escrevendo para
a revista Visão nos anos 1970), para compreender
adequadamente o que se passou seria melhor definir este “vazio”
como um “vazio cheio”. E isto é fundamental para que sejamos
capazes de enxergar como se operou aquela reorientação do campo
ideológico – como se esvaziou o debate político-cultural
de um conteúdo e se o preencheu com outro. É o que veremos
na próxima coluna.
(continua na próxima coluna...)