18 de mar. de 2014

Van Gogh, Artaud e a Cláudia

(por Victor Neves)

“Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?”

Era uma vez um pintor ruivo e de olhar penetrante que, após uma discussão pra lá de quente com seu amigo, cortou o lóbulo da orelha esquerda e o ofereceu de presente a uma puta. Foi internado em um “asilo para alienados” – e não foi a única vez. Muitos anos depois, foi “biografado” por um escritor, dramaturgo e cineasta que, entre outros episódios de “saída da norma”, havia ficado 09 anos internado num hospício.

Antonin Artaud, o biógrafo maluco, sustentou a tese de que o pintor maluco nunca havia sido louco. Seu problema, na verdade, era que ele sofria de “hiper-lucidez”. Segundo o escritor francês, enquanto outros grandes pintores eram “grandes artistas”, o holandês era “um pobre diabo tentando não se enganar”. E era isso o que o fazia superior aos outros. Por não ser artista – por não aceitar se enganar –, o ruivo via o que ninguém antes dele tinha visto.

Corta pra Madureira, 16 de março de 2014. A senhora, a Cláudia, sai de casa pra comprar um lanche na padaria – coisa que não conheço um adulto que já não tenha feito. A cena, que é essa de todo mundo, muda de sentido quando ela é alvejada pela PM. Alvejada por quê? Silêncio.

Van Gogh e a Cláudia morreram de tiro.

Ele, com 37 anos: complicações decorrentes de um tiro desferido por si próprio no tórax. O “pobre diabo” que enxergava mais que os outros olhou... examinou... aprendeu... nos ensinou a olhar... e desistiu.

Ela, 38: parece que enxergava muito bem, mas não morreu disso, não. Morreu porque saiu pra comprar um lanche no valor de 6 reais. Saiu num lugar em que o ato de sair pode te levar a ser assassinado por outros seres humanos. Seres humanos cujo trabalho é, em nome do universal Estado democrático de direito, assassinar regularmente (o importante é a regularidade, certo?) pra garantir algum nível de segurança e paz social... Assassinar regularmente trabalhadoras e trabalhadores para garantir certo nível de segurança e paz social para seus patrões.


Quando li essa notícia no jornal hoje senti cheiro de girassol morto. O biógrafo do ruivo não contou o que foi que tanto ele enxergou... Dizem que ele via tudo em movimento, até o que tava ali na frente dele paradinho. Eu, quietinho, com a garganta seca e os olhos úmidos, entendi: ele viu a Cláudia num domingo de 2014.