(por Victor Neves)
“Que
tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?”
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?”
Era uma vez um pintor ruivo e de olhar penetrante que, após uma
discussão pra lá de quente com seu amigo, cortou o lóbulo da
orelha esquerda e o ofereceu de presente a uma puta. Foi internado em
um “asilo para alienados” – e não foi a única vez. Muitos
anos depois, foi “biografado” por um escritor, dramaturgo e
cineasta que, entre outros episódios de “saída da norma”, havia
ficado 09 anos internado num hospício.
Antonin Artaud, o biógrafo maluco, sustentou a tese de que o pintor
maluco nunca havia sido louco. Seu problema, na verdade, era que ele
sofria de “hiper-lucidez”. Segundo o escritor francês, enquanto
outros grandes pintores eram “grandes artistas”, o holandês era
“um pobre diabo tentando não se enganar”. E era isso o que o
fazia superior aos outros. Por não ser artista – por não aceitar
se enganar –, o ruivo via o que ninguém antes dele tinha visto.
Corta pra Madureira, 16 de março de 2014. A senhora, a Cláudia, sai
de casa pra comprar um lanche na padaria – coisa que não conheço
um adulto que já não tenha feito. A cena, que é essa de todo
mundo, muda de sentido quando ela é alvejada pela PM. Alvejada por
quê? Silêncio.
Van Gogh e a Cláudia morreram de tiro.
Ele, com 37 anos: complicações decorrentes de um tiro desferido por
si próprio no tórax. O “pobre diabo” que enxergava mais que os
outros olhou... examinou... aprendeu... nos ensinou a olhar... e
desistiu.
Ela, 38: parece que enxergava muito bem, mas não morreu disso, não.
Morreu porque saiu pra comprar um lanche no valor de 6 reais. Saiu
num lugar em que o ato de sair pode te levar a ser assassinado por
outros seres humanos. Seres humanos cujo trabalho é, em nome do
universal Estado democrático de direito, assassinar regularmente (o
importante é a regularidade, certo?) pra garantir algum nível de
segurança e paz social... Assassinar regularmente trabalhadoras e
trabalhadores para garantir certo nível de segurança e paz social
para seus patrões.
Quando li essa notícia no jornal hoje senti cheiro de girassol
morto. O biógrafo do ruivo não contou o que foi que tanto ele
enxergou... Dizem que ele via tudo em movimento, até o que tava ali
na frente dele paradinho. Eu, quietinho, com a garganta seca e os
olhos úmidos, entendi: ele viu a Cláudia num domingo de 2014.