14 de ago. de 2014

A “questão cultural” e a Palestina

(por Victor Neves)
(aos amigos Alexandre Magno, Elídio Marques, Isabel Mansur e Márcio Longo)

A palavra “cultura” evoca o conjunto dos conhecimentos sobre o mundo, assim como o acervo das objetivações produzidas no sentido de intervir sobre ele. Sendo criação puramente humana a partir de sua interação social e do metabolismo entre humanidade e meio ambiente, se opõe a “natureza” na medida em que esta, em suas leis últimas, é exterior ao homem. Ou seja: diferentemente da natureza, sobre a qual o homem intervém sem que seja capaz de criar nem de alterar suas leis fundamentais, a cultura é criação exclusivamente humana. 

Por isso mesmo é curioso ver o uso que se faz desta palavra ao se tocar em pontos políticos embaraçosos, sobre os quais em geral o senso comum tende a ser evasivo e não querer “se comprometer”. É exatamente este o caso da Palestina. Ou melhor: da política colonial do Estado de Israel em relação à nação palestina. 

Quem nunca ouviu, durante uma conversa em que aparece o assunto “Palestina-Israel”, o comentário de que aquele seria um tema muito “delicado” devido à presença de tradições religiosas milenares em confronto? A continuação do argumento – que em última é utilizado por quem não quer se posicionar sobre o problema, ou por quem se envergonha de sua posição pró-Israel – é clássica: tratar-se-ia de uma questão “cultural”, dessa “rivalidade milenar entre judeus e árabes”, coisa difícil de resolver e de explicar sem um profundo conhecimento de suas religiões, de suas culturas... Vamos desmontar este mito.

Apresentado assim, o raciocínio opera uma inversão curiosa. Como lembrei na abertura deste texto, “cultura” se opõe a “natureza” justamente na medida em que é o ser humano que cria aquela primeira no processo mesmo de seu desenvolvimento social. Pois bem: a apresentação da suposta “rivalidade milenar” como base para os massacres reincidentemente perpetrados por Israel desde 1948 na região (observe-se que o fenômeno tem pouco mais de 60 anos, nada tendo de “milenar”) é, na verdade, uma tentativa disfarçada de naturalizar sua política colonial, de justificá-la como algo que sempre foi assim (afinal, estaríamos diante de um problema milenar, afirmam os “entendidos”...) e que, portanto, sempre será, restando a nós lamentar. Como pega mal se referir a massacres coloniais como algo natural, se afirma que seriam algo cultural, invertendo o sentido da palavra “cultura”, que passa a fazer referência a leis imutáveis, rígidas (com o perdão da palavra: “talmúdicas”), que não seria possível modificar – em suma, “cultura” passa a significar “natureza”! E não é qualquer natureza: nesta bizarra utilização do termo, “cultura” passa a fazer referência a algo que seria uma pretensa “natureza humana”, em que o homem seria o lobo do homem, um bicho egoísta, incapaz de conviver com o diferente e disposto a tudo para se defender dele.
 
A verdade é que a questão Israel-Palestina, e principalmente estas operações que o Estado sionista israelense vem executando na região de Gaza desde 2006, nada têm de “questão cultural” – a não ser por suas óbvias consequências político-culturais, tornando a população da Faixa de Gaza mais desesperada e radicalizando-a, e pelos componentes culturais que sempre acompanham questões coloniais. Vejamos brevemente em argumentos e números* porque esta questão é pura e simplesmente uma questão colonial – e como tal deve ser combatida sem trégua. 

Gaza é uma das duas regiões que compõem os territórios palestinos, ocupadas a partir de 1967 pelo Exército de Israel – a outra é a Cisjordânia. Com seus 1,8 milhão de habitantes distribuídos por 362 km quadrados, é uma região muito densamente povoada, com cerca de 4.500 hab./km quad. Sua principal cidade, a Cidade de Gaza, conta com uma das maiores densidades demográficas do mundo – o que, aliás, significa que qualquer ataque aéreo a esta cidade fará necessariamente muitas vítimas civis, fato que Israel negligencia imperialmente. 
 
Israel, após se retirar militarmente da faixa de Gaza em 2005, impôs sobre ela um pesadíssimo embargo ou bloqueio econômico a partir de 2006. Este bloqueio é de tal ordem que Gaza se converteu em uma espécie de “grande prisão a céu aberto”, por sinal murada (!), com apenas dois acessos por terra em uso (Erez e Kerem Shalom): um por onde podem entrar e sair pessoas e outro por onde podem entrar e sair mercadorias. Os acessos por mar e por ar são bloqueados, controlados draconianamente pelas forças armadas israelenses, e o aeroporto da região foi destruído. Nesta situação, todo e qualquer produto que entre e saia de Gaza deve passar por... Israel! Qualquer semelhança com aqueles nossos velhos conhecidos latino-americanos, os “pactos coloniais”, infelizmente não é mera coincidência. Israel procedeu assim: retirou os colonos, mas manteve na prática o estatuto colonial da região.

O resultado: a taxa de desemprego em Gaza é de cerca de 40%; cerca de 70% da população depende de alguma ajuda “humanitária” como, por exemplo, da doação de alimentos, para sobreviver; Gaza só dispõe de fornecimento de energia elétrica de 8 a 12 horas por dia (!), o que afeta diretamente a hospitais, escolas e demais instituições públicas, para não falar da população civil em seu dia-a-dia; a zona permitida por Israel para a pesca é de apenas 3 milhas náuticas Mediterrâneo adentro, quando segundo as Nações Unidas as zonas mais piscosas estão 8 milhas náuticas afastadas da costa – sendo a pesca uma das principais atividades econômicas em Gaza...

Não à toa, dentre as principais reivindicações do Hamas estão: possibilidade de construção de um aeroporto; possibilidade de construção de um porto; extensão da zona de pesca. Todas as três relativas ao embargo! E o principal argumento do Hamas para não aceitar um cessar-fogo permanente é... que Israel não aceita suspender o embargo!
 
A razão é clara: suspender o embargo seria abrir mão da condição colonial da Gaza. Como sabemos muito bem acompanhando exemplos de embargos pelo mundo – dos quais talvez o mais conhecido no Brasil seja aquele imposto pelos EUA à Cuba socialista –, os embargos costumam causar muito mais danos e mortes do que qualquer ação militar. No caso palestino, de Gaza em particular, a combinação entre embargo e ações militares periódicas (já são quatro grandes operações  militares desde 2006) gera o seguinte quadro: 500.000 pessoas deslocadas de suas casas (1/3 da população...), 240.000 residindo em abrigos da ONU; milhares de moradias destruídas; grande parte da capacidade industrial do país neutralizada; quase metade das terras agrícolas do país arrasada; milhares de palestinos mortos, civis em sua grande maioria, dos quais 1.939 somente nesta última ofensiva militar - contra 67 mortos israelenses, dos quais apenas 3 civis. 
  
Neste contexto, em que a manutenção da política colonial só pode ser feita mediante o extermínio sistemático da população que resiste, não soam nada exageradas as palavras de Eduardo Galeano, com as quais encerramos este texto**: “Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Nem sequer têm direito a escolher seus governantes. Quando votam em quem não devem votar, são castigados. Gaza está sendo castigada. (...) E o desespero, a espera pela loucura suicida, é a mãe das bravatas que negam o direito à existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, há anos, o direito à existência da Palestina. Já resta pouco da Palestina. Pouco a pouco, Israel a está apagando do mapa. Os colonos invadem e depois deles os soldados vão restabelecendo a fronteira. As balas sacralizam a remoção, como legítima defesa. Não existe guerra agressiva que não diga ser guerra defensiva”.

Paris, 14 de agosto de 2014.

* As fontes de onde foram extraídos os números neste texto foram as versões eletrônicas dos seguintes jornais: Le Monde; Libération; Le Point; The Washington Post; The Wall Street Journal.
** O texto de Eduardo Galeano (“Si yo fuera palestino”) foi publicado pelo órgão salvadorenho ContraPunto, estando disponível na internet.