(por Victor Neves)
“Veja que beleza
Em diversas cores
Veja que beleza
Em vários
sabores
A burrice está na mesa”
Tom Zé
– Sabor de Burrice, 1967.
Há algum tempo, em português, se usava a palavra golpe pra falar de
um sucesso: “deu o golpe” era sinônimo, entre outras
possibilidades, de “se deu bem”, “conseguiu o que queria”.
Nesta semana marcada pela triste celebração do Golpe de 64 no
Brasil, pode-se dizer sem hesitar: a burguesia brasileira, em 64,
realmente “deu o golpe”.
Há os evidentíssimos campos onde só não vê quem não quer. O
material historiográfico e os estudos de que já dispomos apontam
claramente qual foi o setor social que lucrou economicamente com o
golpe; em nome de quem ele foi dado; quem o planejou e trabalhou para
que a “opinião pública” o aceitasse sem maiores sobressaltos.
Aprofundam-se hoje as investigações mais precisas sobre os detalhes
do processo – por exemplo, quem COMPROU os oficiais, entre outros
mistérios encerrados nesta gaveta farta (que o governo Dilma insiste
em querer manter fechada) de conexões entre os milicos e a nossa
amiga que, ao contrário da outra, não faltou ao encontro: a cantada
e decantada burguesia nacional, sucursal brasileira de uma velha
conhecida – a burguesia tout court.
Por outro lado, a ditadura “deu o golpe”, também, num terreno
talvez menos “quantificável”: falo, claro, do terreno cultural.
O “golpe”, no campo da cultura, foi a criação daquele “ambiente
cultural” no qual milhões de pessoas com menos de 50 anos de idade
se tornaram gente. A criação daquele meio no qual nossas
sensibilidades, nossas visões de mundo, nossos anseios mais vivos,
nossos impulsos profundos, foram formados.
“Conhece-te a ti mesmo”, já ensinava um antepassado do dr.
Sócrates. Examinemos então, por alto, alguns aspectos do grande
sucesso da ditadura empresarial-militar brasileira no campo cultural.
1. A ditadura e a criação de um mercado nacional de bens
culturais no Brasil.
Sob a ditadura houve a expansão sem precedentes da capacidade de
produção e difusão de bens culturais no Brasil. Ela se combinou,
ainda, ao alargamento do acesso a estes mesmos bens, resultando na
consolidação de uma moderna cultura de massas no país. Isto se
materializou na expansão de cada vez mais pujantes – e
monopolizados – mercados editorial, fonográfico, televisivo etc.,
em nível nacional. Em síntese, na existência de verdadeiro mercado
nacional de bens simbólicos. Grife-se, por favor, a palavra MERCADO.
De outro lado, esta enorme expansão do acesso à cultura se
desenvolveu justamente com a expansão do MERCADO a mais uma esfera
da vida nacional – a esfera cultural. E, portanto, coincidiu com a
colonização de mais alguns campos da existência humana por esta
entidade que, apesar da onipresença, de sobrenatural não tem nada.
E que tem uma característica, toda sua, que se expande também ao
campo da cultura: no mercado não existe “fazer desinteressado”.
Tudo o que se produz em seu âmbito pode até satisfazer necessidades
humanas desde que, ANTES e como CONDIÇÃO, seja rentável a alguém
– na utopia dos liberais, a quem produz, mas na prática a quem
detém os meios para que se produza.
Assim, um resultado da modernização brasileira promovida pela
ditadura foi uma ampliação do mercado cultural combinada a um
empobrecimento da atividade cultural propriamente dita. Esta se
voltou, cada vez mais, para a mera manipulação (aqui entendida como
satisfação de impulsos imediatos e superficiais, tendentes à
reprodução e ao não-questionamento do existente) do “consumidor”
combinada ao atendimento dos interesses de grupos monopolistas
“produtores” e vendedores de “bens culturais”.
2. A política cultural da ditadura: em busca do emburrecimento
perdido.
Hoje se critica muito, nos suplementos culturais dos jornalões
brasileiros, a ditadura “por seus excessos desnecessários no campo
da cultura”, caracterizando-se sua política cultural,
irresponsavelmente, como uma “não-política” baseada na
“repressão à livre criatividade” materializada na censura
prévia. Naturaliza-se ao mesmo tempo, numa boa, o processo de
modernização conservadora que ela concluiu – assim como a
repressão brutal às organizações da classe trabalhadora
brasileira que este processo exigiu. Vale lembrar: a repressão
política teve uma dimensão eminentemente cultural, tendo servido
para cortar os laços dos “produtores de cultura” e intelectuais
de diversos estratos sociais com a classe trabalhadora então em
processo de organização e radicalização. Estes aspectos não são
senão a contraface um do outro.
Restringindo-se a ação, no campo da política cultural da ditadura,
à “condenável censura” (que, aliás, é caricaturada em tom
jocoso como se fosse exercida sem objetivo claro por gente ignorante,
o que está longe da verdade), perde-se de vista o que o regime
realmente conseguiu nesta esfera e que vai muito além do “pitoresco”
expediente de cortar palavrões de músicas ou exigir correção
gramatical do compositor.
Com a muito bem dosada combinação entre: censura prévia; brutal
repressão política; expansão em escala inédita e “racionalizada”
do ensino universitário; consolidação de um mercado nacional de
bens simbólicos no Brasil, a política cultural da ditadura
empresarial-militar inaugurada em 1964 sabia a que vinha.
Sabia a que vinha, e conseguiu dar o “grande golpe” que almejava:
desarmou aquilo que Roberto Schwarz chamou de “hegemonia cultural
da esquerda” no país, que teria existido, segundo o professor, até
pelo menos 1969. E que teria deixado o país, nos anos que precederam
o golpe, “irreconhecivelmente inteligente” – que se recordem,
como meros exemplos escolhidos ao acaso, o florescimento cultural
baiano que desaguou no Tropicalismo e no Cinema Novo, o nível em que
se desenvolvia o debate político no plano nacional, a intervenção
cultural aglutinada em torno dos CPCs da UNE.
3. O “desesquecimento” necessário.
Hoje, quando lemos certos colunistas da revista Veja autorizados a
falar em público como intelectuais; quando vemos “reality shows”
sendo acompanhados como partidas de futebol; quando lemos as colunas
assépticas do jornalismo contemporâneo, que reivindica a
“objetividade” contra qualquer possibilidade de debate político
público; quando ouvimos “historiadores” afirmando que a
ditadura, afinal, não foi bem isso que se diz; ou mesmo quando vemos
Caetano Veloso e, por que não, Tom Zé, sustentando posições que
os envergonhariam há 50 anos... Respondemos que não é possível
esquecer.
Hoje, quando dizemos que “não é possível esquecer”, é porque
sabemos que a história não passa: ela, como esses rios perenes,
esculpe seu leito ao correr.
Hoje, se queremos retomar nossa capacidade de pensar e de criar
outras possibilidades de vida, mais plenas de sentido propriamente
humano, vale a pena conhecer bem o leito deste rio em que todos nós
nadamos, no Brasil, desde pelo menos 1964.
(Aos companheiros Demian Melo, Felipe Demier e Rejane
Hoeveler – sempre às voltas com os caminhos e descaminhos da
memória).