7 de mar. de 2014

Na cadência bonita da subversão

(por Victor Neves)

“Pra tudo se acabar na quarta-feira”, lançou o poeta camarada. Ora, quem tem alguma prática em chutar latinha na terça-feira gorda imagina bem do que ele falava. Quarta-feira, e cadê o Hulk no mercado? E o Zé Paulo com sua pipa no Comuna Que Pariu (quem viu, viu, quem não viu taí o “feice”...)? Até a onipresente Melindrosa desapareceu na esquina, antes mesmo de ganhar o prêmio fantasia original.

Pro amigo do carnaval, sobra aquela ressaca braba e aquela tristeza grande que nem Lago lembrando que não, que “o reino da liberdade” não veio como alguém cantou que viria na segunda às 2h no Cacique. Isso, é claro, quando o Cacique rolava pré-olimpicamente segunda às 2h...

Figuras de linguagem e ressacas imensas à parte, a vida parece que taí. Coisas banais, cotidianas mesmo, continuam acontecendo o tempo todo. Por exemplo anteontem, quarta-feira de cinzas, foi solto na Costa Leste dos EUA um cara de 67 anos de idade, 44 puxando cana por ter supostamente assassinado um policial. E na semana passada mesmo, em São Paulo, foi preso o sujeito que empurrou uma moça nos trilhos do trem. Ela parece que perdeu um braço, ele parece que alegou que se vingava nela do mal que o “pessoal do mundo” lhe infligiu...

A imprensa também continua, rotineiramente, seu trabalho de nos informar sobre o mundo, explicando-o. Através dela ficamos sabendo que Marshall “Eddie” Conway, quando jovem (e, portanto, quando livre), vestia a camisa do Pantera Negra, e não era pra pular carnaval. Também, que sua acusação foi baseada nos depoimentos de duas pessoas e, apesar de conduzida sem nenhuma prova material que o incriminasse diretamente, convenceu o júri da culpa do réu (ô promotoria hábil essa, hein?). Finalmente, que os Black Panthers eram uma organização subversiva segundo o Departamento de Estado norte-americano. Tá explicado!

Os herdeiros de Gutemberg também nos informam que aquela moça que perdeu o braço se chama Maria da Conceição Oliveira, e que o moço que a empurrou se chama Alessandro de Souza Xavier. Ele tem 33 anos, e não se sabe quanto tempo vai amargar no xadrez. Ela tem 28 anos, e perdeu um braço. Também ficamos sabendo que ele é “louco” e “esquizofrênico”, e... Tá explicado!

Mas... Não, peraí. Parece que tem gente que não engoliu...

No caso do Alessandro (pois é, às vezes é bom chamar as pessoas pelo nome), a repórter e escritora Eliane Brum publicou um texto luminoso no sítio do jornal El País. Sustentou que uma sociedade que “explica” um caso desse através da doença mental do sujeito só pode estar precisando, ela mesma, de uma boa análise. Me faltando o talento que ela tem, resumo o argumento do texto com uma pergunta de principiante: por que diabos esse “louco” estava empurrando gente na linha do trem, e não pintando quadros (adoro Van Gogh...), pesquisando geometria diferencial (será que o John Nash empurrou alguém da linha do trem? Pode ser ignorância minha, mas nunca ouvi falar...) ou sendo mestre de bateria no Comuna que Pariu (ahhh, mestre Buchecha...)?

No caso do Eddie, foi ele próprio que não tomou a azulzinha. Preso por assassinato, sempre alegou que seu único crime foi se meter a defender direitos dos negros e militar numa “organização subversiva” na terra da Budweiser e do BigMac – e da bomba atômica, claro. E um dia depois de solto, após cerca de 44 (!) anos preso por fazer a coisa certa, contou que só percebeu que aquilo tinha sido real quando saiu e pisou na calçada (Alô?! Já imaginou ficar 44 anos sem pisar numa calçada?).

E é daí mesmo, dessa declaração do Pantera, que a gente volta lá no carnaval carioca e no nosso CQP... Esse bloco, até as pedras da Cinelândia sabem que é organizado por gente “comprometida politicamente” – como a direita gosta de dizer. Boa parte do pessoal “tem ligações” com seitas que sustentam ideias pra lá de ultrapassadas... Mostro algumas, direto aqui do meu baú particular: primeira, se a gente analisar a sério nossa época, salta aos olhos a irracionalidade (a loucura?) de uma vida construída a partir das necessidades das coisas e não das necessidades das pessoas; segunda, é um pouco estranho engolir que “tá ruim mas tá bom, afinal a gente produz e vende tantas coisas justamente pra satisfazer as necessidades das pessoas” (interessante essa: deve ser isso que explica a existência da publicidade, esse serviço de utilidade pública da vida moderna que nos ensina a satisfazer racionalmente nossas próprias necessidades. Certo?); terceira, numa sociedade em que tudo parece cada vez mais organizado, o que é deixado de fora da organização é justamente o conteúdo real da vida – as necessidades de cada pessoa de carne e osso que vive dia a dia e que pode pintar quadros, empurrar gente nos trilhos do trem, lutar por outra sociedade ou chutar lata no carnaval.

Desse trampolim, mergulho direto e reto: e afinal por que existe o CQP?

Justamente porque se deve ser muito sensato pra engolir na boa essa sociedade que tá todo mundo aparentemente engolindo na boa. Ou porque se deve ser um pouco louco pra se armar até os dentes e arregimentar coragem pra lutar contra ela, arriscando construir alguma coisa de mais interessante sem ter como prever exatamente o que vai ser (além de eventualmente essa decisão ocasionar certos problemas de vista, como passar uns anos vendo o sol nascer quadrado). Existimos, enfim, porque se no carnaval as fronteiras entre o sensato e o louco dão aquela borrada, então este é um espaço em que vale a pena intervir.