por Victor Neves
03. Reescrita da história e “vazio cultural”
A expressão “vazio cheio” deixa margem a dúvidas. De fato, há
diferentes interpretações sobre o que se teria passado entre os
anos 60 e 80, no campo da cultura, no Brasil.
Há quem enxergue na produção cultural durante o “vazio” do
AI-5 inúmeras formas de resistência, mesmo que velada ou centrada
na denúncia das consequências da ditadura sobre certos indivíduos
ou estratos sociais. Um exemplo desta “resistência” estaria na
chamada “poesia marginal”, que mostraria o dilaceramento do
indivíduo impotente para lutar contra o horror. Esta interpretação,
no entanto, me parece insuficiente (quando não simplesmente
equivocada), justamente porque não capta a tendência principal
então em curso.
Quer me parecer que o que ocorreu neste período – e por isso a
expressão “vazio cheio” para se referir à cultura sob ele é
bastante adequada – foi que nele se esvaziou um programa de
intervenção no campo cultural, ao mesmo tempo em que se viabilizou
sua substituição por outro programa. Isto quer dizer que, no
período, tratou-se de remodelar a sensibilidade média da
intelligentsia brasileira – em última, de atrofiar esta
sensibilidade em relação a tudo o que diz respeito ao desenrolar da
vida social sob o capitalismo e os inumeráveis problemas
relacionados.
Atrofiou-se a sensibilidade do intelectual brasileiro (aí
compreendido o artista) para tudo o que diz respeito à vida
realmente existente fora dos limites das quatro paredes de sua sala –
ou das paredes do seu “self”. Neste rol podemos enumerar, apenas
a título de exemplo: a dureza da vida dos estratos mais pauperizados
da classe trabalhadora, sistematicamente reprimidos e controlados por
um Estado que tem sua dimensão punitiva-penal cada vez mais
alargada; seu próprio processo de proletarização, ou seja, a cada
vez mais universal transformação do intelectual em trabalhador
intelectual (assalariado); a mercantilização geral da vida e da
cultura etc.
Em artigo anteriormente publicado nesta coluna, enumerei por alto
através de que expedientes isto se deu, no Brasil, ao longo da
ditadura empresarial-militar: combinação entre “censura prévia;
brutal repressão política; expansão em escala inédita e
‘racionalizada’ do ensino universitário; consolidação de um
mercado nacional de bens simbólicos no Brasil”. Aqui, vale uma
observação: esta consolidação sempre teve um aspecto dirigido:
inicialmente através da combinação entre censura prévia e
investimentos estatais em certos veículos (através, por exemplo, da
compra de cotas de publicidade em revistas); depois – e até hoje –
através do último procedimento combinado à reformatação da
“demanda social”, já que o primeiro (a censura) deixou de ser
necessário quando os próprios operadores do mercado cultural já
estavam devidamente aptos a selecionar o que “deve” e o que “não
deve” ser publicado, o que “é ideológico e portanto não
interessa ao público” e o que “é interessante”.
Mesmo considerando que os governos durante a ditadura, ao que tudo
indica, não tinham um controle assim tão absoluto sobre a vida
cultural quanto gostariam de fazer crer, o conjunto de procedimentos
enumerados, combinado ao medo (fundamentado) de ir em cana numa
situação em que isto simplesmente não parecia valer a pena – uma
situação em que, para muitos, a batalha já parecia perdida –,
cumpriu muito bem seu papel. Sem meias palavras: acovardou e
amesquinhou a vida intelectual brasileira.
Tomando emprestada definição a que chegou José Paulo Netto
analisando a literatura do período em 1974, temos o seguinte: no
período do “vazio cultural” sob o AI-5 se passou de uma
literatura de contestação a uma literatura de
constatação. Me parece que a afirmação é válida para a
produção cultural do período tomada no geral, e não apenas para a
literatura1.
Ou melhor: me parece que ela aponta corretamente a tendência que
prevaleceu – ainda que as transformações no campo das ciências
humanas tenham se desenvolvido em ritmo diferenciado, “menos
linearmente” (e me parece que este “desenvolvimento desigual”
entre ciência e arte no campo cultural brasileiro neste período
mereceria ser estudado de modo mais aprofundado).
Esta passagem da contestação à constatação2
teve consequências: a principal é que, sob a capa da novidade, se
reatualizou no Brasil velha tendência apontada por Carlos Nelson
Coutinho, já nos anos 70, como tônica de nossa vida cultural: a
tendência ao intimismo à sombra do poder. Mas este é o tema
da próxima coluna, a IV desta sequência que tenta mostrar um pouco
como o golpe marcou e marca o conjunto de nossa vida intelectual –
até hoje.
(continua na próxima coluna...)
1
Este trânsito pode ser percebido esteticamente através de pequenos
“exercícios comparativos” com obras de arte representativas de
um mesmo autor em cada uma das duas diferentes situações. Deixo
aqui algumas breves sugestões, referentes a diferentes campos da
cultura (e espero retomar o problema no futuro):
- de Tom Zé, escutar a música “Parque Industrial” (disco: “Tropicália”, 1968) seguida por “Todos os olhos” (disco: “Todos os olhos”, 1973).
- de José Carlos Capinam, ler o poema “Inquisitorial” (publicado pela primeira vez no livro de mesmo nome, no emblemático ano de 1964) seguido por “Anima” (presente na coletânea “26 poetas hoje”, organizada por Heloísa Buarque de Holanda e publicada em 1975). Os dois estão disponíveis na internet.
- de Arnaldo Jabor, assistir ao filme “O circo” (de 1965) seguido por “Eu te amo” (de 1981).
2
Esquematicamente: enquanto uma obra de arte de contestação parte
dos problemas da mulher e do homem concretos, tomados em determinado
momento e espaço, figurando situações que têm certa dimensão
moral que exige solução (que pode ser apresentada ou não na
obra), na obra de constatação apenas se constata um estado
interior tomado em abstrato – que está no artista, que pode
também estar no receptor da obra, ou que pode estar num homem
qualquer de uma era qualquer, já que se rompem as mediações que
levam à concretização histórico-social do conteúdo
da obra. Quando se rompem estas mediações, borra-se também o
sentimento de necessidade de superação
do problema, tido como “eterno”.